maio
17
2021

Opacidades e Transparências entre “Marighella” e “Judas e o Messias Negro”

“Judas e o Messias Negro”, filme sobre revolucionário negro americano, é estreia na direção de Shaka King.

é sobre a biografia de Fred Hampton, presidente do Partido dos Panteras Negras nos anos 60, assassinado pelo FBI por meio de um agente infiltrado no partido.

a fotografia de Messias Negro é de Sean Bobbitt, parceiro de Steve McQueen (As Viúvas, 12 Anos de Escravidão, Shame) e Spike Lee (OldBoy), que traz inevitavelmente uma comparação com “Marighella” de Wagner Moura.

desde “Cidade de Deus” com a câmera de Cesar Charlone, passando por “Tropa de Elite” com foto de Lula Carvalho, o cinema de ação brasileiro com temas sociais ganhou uma assinatura visual.a câmera instável sob todos pontos de vista, identificando campos de instabilidade.

tanto emocional das personagens quanto político.Tony Scott, que fez “Um Tira da Pesada 2”, “Amor à Queima Roupa”, o excelente “A Fome” com David Bowie, Susan Sarandon e Catherine Deneuve, seu longa de estreia, incorporou a “cosmética Cidade de Deus” em seus últimos trabalhos.

Charlone filmou com Spike Lee em “Código das Ruas” (2004), filme desconhecido rodado para TV, com sua assinatura de câmera instável.

Charlone fotografou vários filmes com Tony Scott, como “Chamas da Vingança” com Denzel Washington.a assinatura Cidade de Deus definiu o cinema de ação séc XXI quando é conveniente retratar o terceiro mundo pelo mercado de cinema norte americano.

questões como “filtro amarelo” são discutidas hoje quando se evidencia que a paleta de cores identifica um país atrasado, não democrático, sujo.basta Heisenberg cruzar a fronteira e as cores esquentam em Breaking Bad.

filmes do Netflix como “Extraction” com o ator Chris Hemsworth, retrara Bangladesh como um lugar que não existe céu azul. é tudo sujo, quente, amarelado.

e é nessa lente que Wagner Moura apostou sua estreia na direção. “Marighella” começa e termina com um crescendo narrativo de ação que é característico do ritmo de seriado.

o fotógrafo de “Marighella”, Adrian Teijido, assina a série Narcos, onde Wagner Moura interpretando Pablo Escobar teve ótimo acesso no mercado norte americano.

Teijido também fotografou “Irmandade”, seriado netflix de Pedro Morelli com Seu Jorge. neste seriado, uma advogada procura saber como anda seu irmão preso décadas antes, e que comanda uma facção criminosa da cadeia.”Irmandade” é da O2 FIlmes produtora de Fernando Meirelles, de Cidade de Deus e “Marighella”.

em “Judas e o Messias Negro”, o diretor estreante Shaka King escolhe uma narrativa tensa com características de cinema.se é que existe diferença entre narrativa de cinema e de seriado, pode ser pelo ritmo e alegoria da câmera.

qual sentido uma câmera faz um movimento circular? por qual ponto de vista o corte de duas ou mais câmeras querem dizer sobre quem conta a história?

o artifício da câmera em Cidade de Deus tem um motivo coerente, de que é tudo tão instável e incerto, que a vida não vale muito na favela, que a alternância de poder (e portanto da narrativa) não pertence ao narrador.em Cidade de Deus a narração em OFF gera um contraponto perfeito.

em “Marighella” a instabilidade da câmera me parece uma indecisão narrativa escolhida por Wagner Moura e sua equipe.o recorte da vida do guerrilheiro brasileiro é feita como num capítulo de um seriado onde já teve antecedentes que todos já sabem.

essa incerteza artificial coloca “Marighella” num campo de ação cinemática cujo ponto de vista narrativo não opera uma gramática com potência de cinema.a potência de “Marighella” é pela troca de conflitos na atuação.

se torna depois de mais de duas horas cansativo, com o artifício da câmera flutuante aparecendo mais do que a montagem.a opacidade e “efeito-janela” no conceito de Ismail Xavier, dispositivo no qual o espectador ou entra na história como experiência, ou percebe os artifícios do ilusionismo e pensa com distanciamento, pode ter várias leituras em “Marighella”.

um cinema que relaciona o espectador como sujeito, de um lado, e de outro um cinema que condiciona o espectador a se identificar com as posições de subjetividade construídas pelo filme.

Wagner Moura e a O2 jogam então com a polaridade, se você não gosta do filme “Marighella” é porque não gostou da história.

assim como o oposto.na cena inicial de “Judas e o Messias Negro” vemos um histórico da investigação do FBI sobre os Panteras Negras. a ameaça do comunismo nos EUA representado por movimentos sociais e identitários e o inimigo a ser eliminado.corta para os créditos iniciais.

LaKeith Stanfield caminha à noite por uma rua em Chicago, 1968. para de caminhar e acende um cigarro. corta para o personagem de costas. o figurino é noir, a rua molhada reflete os letreiros vermelhos.de costas, vira para o bar, a câmera acompanha, até parar na janela da porta do bar, onde vemos uma rapaziada jogando sinuca.

o personagem sai do quadro para esquerda, a câmera segue e enquadra de perfil. ele parece decorar uma fala, e volta para posição inicial de costas, joga o cigarro longe e volta de novo para a porta do bar e entra.

a câmera acompanha.essa introdução a um personagem traz informações de um contexto, de uma época, de um caráter, ilustrando o personagem título “Judas” que dá uma volta em 360º na história.penso que essa chave de discurso cinematográfico leva a linguagem para um acesso a uma infinidade de significantes.

é uma condução a uma história.já Wagner Moura nos traz para uma briga que é necessária mas seu ponto de vista não parece estável, parece que falta uma ideia de narrativa cinematográfica para nos conduzir a conhecer os personagens.mas ele já nos leva a sentir o drama de um personagem histórico já consolidado num meio intelectual, sem entregar uma gradação de personagem para o público.

acho que incomoda essa afetação de estética de seriado de ação. como se pode imaginar, a vida de um Pantera Negra nos anos 60 nos EUA não teve menos perseguição, violência e tensão que os guerrilheiros no Brasil. mas não é por esse motivo que a narrativa de um filme precisa ser gritada e flutuante o tempo todo.

como fez Spike Lee em seu “Malcom X”, maior parte do filme vemos Denzel Washington se tornando o líder, de maneira a apresentar contrapontos de sua personalidade, sua formação.

sem diminuir o filme, mas incomoda um pouco ler críticas elogiando Marighella como um filme de resistência e que “sendo a estreia na direção está ótimo”.para um filme com orçamento de 4 milhões de dólares é uma boa estreia.