dez
13
2021

Pipoca pós-pandemia

o que consegui notar foi que a “mulher dourada” do pintor gustav klimt aparece em cena do filme “gucci” de ridley scott, e me parece que é um símbolo.minha primeira sessão de cinema em sala de cinema após a pandemia foi o filme com lady gaga, de um dos diretores que mais curto assistir filmes no cinema.

porém a experiência foi estranha. talvez imaginar um retorno ao templo foi uma fantasia. porque na prática, a sessão podia ser de um filme do homem-aranha.

eu amo sessão de cinema com pipoca. mas tem filme que é pra assistir. e quando eu pago uma entrada de filme, assistir à tela é ver imagem e ouvir som.

já chego numa fileira que tem atrás dois casais e um cara, todos comendo pipoca com um arfar claucitante digno de inveja a cena de filme circense.a ideia do filme “gucci” de uma família patriarca italiana com o surround de pipoca maltratada lembra “rutti, sporchi e cattivi” do ettore scola.

só que nesse filme, a ideia é proporcionar uma experiência cinematográfica. eu sei que a pipoca faz parte da experiência. tem muitos filmes, a maioria dos que estão em cartaz, que tem o nível de som já pensado pra não atrapalhar a mastigação.

cinema é uma catarse de experiência coletiva. se eu ligo meu celular pra navegar no instagram durante uma sessão é óbvio que vou atrapalhar a visão de quem está atrás.

assim como mastigar pipoca sem parar durante mais de meia hora em cima de diálogos sutis, atrapalha demais assistir a um filme. mas nem deu tempo de reclamar.

já durante a cena da balada em que a personagem da lady gaga conh]ece o personagem de adam driver, chegam mais três pipoqueiros na fila da frente.

cada um com o balde super master de 2Kg de pipoca cada, sério mesmo, gigante. sentaram-se e cada um ficou pegando a pipoca do outro num movimento ensaiado orgiástico. e as bocas destruindo cada pipoca numa crescente. o detalhe que foi o estopim foi o perfume. o cheiro de perfume. forte, numa sala de cinema que precisa de ventilação por causa da pandemia.

eu não esperava realmente por essa experiência frustrante. mas eu gosto de analisar os filmes do ridley scott pelo estilo. como ele apresenta as personagens e movimenta a câmera. como ele constrói tempos que ultrapassam o tempo da história. pode ser um filme nos anos 70 que parece futurista e de repente medieval. e os vapores. toda cena tem ao menos uma fumacinha. ou neblina, ou fog, ou fumaça e vapor. acho muito massa, tem toda uma explicação.

na cena em que o personagem blazé de jeromy irons mostra na parede o quadro “mulher dourada” de gustav klimt, apesar do barulho chato em volta, tive uma ideia sobre o porquê do quadro aparecer em close.

klimt era um pintor bem sucedido na técnica e um rebelde na questão do estilo acadêmico. o quadro da cena foi encomendado por um rico industrial para pintar a sua mulher. anos de esboço para chegar numa obra que marcou a época da história da arte com uma mistura de técnicas: o rosto e braços pintados a óleo e o resto uma colagem com folhas de ouro e outras técnicas.

um exemplo da art nouveau que veio a inspirar todos movimentos artísticos de vanguarda na arte, literatura, cinema, com retrato não realístico, não naturalista.

o retrato das mulheres de klimt se desfazem, se confundem com o meio pra se destacar, como no quadro “o beijo” que scorsese usou como referência na cena dos personagens de michelle williams e leonardo di caprio abraçados (em “shutter island” / ilha do medo, 2010).

o abraço do casal é uma memória e a personagem se desfaz.

já no filme “gucci” a personagem da lady gaga se confunde com as estampas douradas. ou se personifica no ouro que almeja.

e esse simbolismo é genial, por uma artista que é cantora e parece brincar de atuação em cada cena, é incrível. excelente.

mas o público é infantilizado, precisa exteriorizar que está comendo durante a projeção do filme. é a hora do recreio.

lembro alguns filmes em que observo a plateia e vejo o erro. um do próprio ridley scott, “american gangster” (2008). uma família sapatênis, o casal branco, jovem, com casal de filhos adolescentes. cheios de pipoca e refrigerante.

claro que a diversão da família foi assistir a um filme sobre um traficante negro que dominou o submundo de tráfico de heroína nos anos 70 em nova york. óbvio. na cenas das mulheres seminuas separando a droga com máscaras e misturando com fórmula de leite em pó infantil é cinematograficamente linda. só a família de pipoca e refrigerante não concordou. nunca vou esquecer a cara da mãe segurando uma pipoca durante 1min na boca com os olhos arregalados antes de puxar a prole para fora da sala.

mas não foi o que aconteceu na minha volta tanto tempo fantasiada em sala de cinema. impossível lidar com várias pessoas em volta numa sala escura mastigando de boca aberta exalando perfume doce.

o que tirei da lição é que o ridley scott avisou com o quadro de gustav klimt. parece uma pintura luxuosa, mas no fundo é uma obra encomendada com um fundo de rebeldia à forma acadêmica. acho que a experiência coletiva de cinema vai ser difícil ter um novo normal.

ou ao menos, é preciso tentar se discutir a infantilização do público. eu penso em botar umas bancadas e mesinhas tipo hora de recreio, cheio de pipoca, e uns filmes da marvel, mas não tenho verba pra isso.